
Postado dia 13/07/25 | 7min. de leitura
Nego Fugido: tradição e resistência cultural em Acupe
0 comentário
0 curtida
261 visualizações
O Nego Fugido é uma obra de arte, um patrimônio imaterial do Recôncavo Baiano que toca no fundo do coração. Impossível não se emocionar com os “Negos” se “estrebuchando” no chão, com o enredo da manifestação curada pelo tempo, pela tradição e pelos saberes populares.
A manifestação cultural do Nego Fugido é muito mais que uma atividade folclórica. Ela é a voz de um povo que insiste em preservar a história de luta e resistência à escravidão dos seus antepassados.

Com ironia e sagacidade revela interpretações que permitem às novas gerações a compreenderem com clareza quem foram os verdadeiros protagonistas da colonização. Que esse conhecimento continue a inspirar as lutas do presente.
Neste artigo, fiz um roteiro básico sobre a manifestação em si, que conduzirá o leitor a uma noção mínima. Também preparei um breve histórico que explica a origem das aparições do Acupe, contextualizando ainda mais o Nego Fugido como uma delas.
Aos que vão assistir o Nego Fugido ao vivo no mês de julho, segue um conselho: prepare o coração, a mente e o espírito: é uma das manifestações populares mais fortes, genuínas e belas do Brasil!
Nego Fugido do Acupe: um roteiro que funde lenda, tradição e história

O roteiro a seguir foi elaborado como síntese de um capítulo da tese de doutorado de Monilson dos Santos Pinto.
Tudo começa com o toque de tambores e atabaques na porta da Madrinha, antes do povo se vestir e se transformar nos personagens que vão às ruas.
Em pouco tempo a musicalidade atiça a comunidade e logo se vê o povo se pintando com uma espécie de tinta produzida com carvão e óleo. Ao tingirem seus rostos, deixam de ser fulano, sicrano e beltrano e se tornam as “Negas”, como os escravizados são chamados no Acupe.
Logo, o puxador das cantigas e mestre de ritmo inicia a aparição do Nego Fugido, com as Negas indo para o pé do atabaque e o Caçador (negro pintado e vestido com saia de bananeira, representando os captores) de longe apreciando. O momento remete à captura dos negros na África, para serem levados como escravizados aos navios negreiros.
E logo um ritmo específico dos tambores e atabaques chama os caçadores para a encenação, que surgem sorrateiramente de vários pontos sob a liderança do Capitão do Mato, atacando e caçando as Negas.
O Rei de Portugal também invade a aparição e surge protegido por Militares Portugueses, simulando a invasão dos colonizadores em territórios africanos. Eles acompanham as emboscadas de captura à distância.

A Madrinha do Nego Fugido, que está vestida de branco, também assiste de longe a cena de morte e captura das negas, que no chão se estrebucham e se contorcem simulando a agonia na hora da morte.
Os Caçadores pegam as Negas vivas, amarram suas pernas, braços e pescoços, e saem com elas para trabalhar (vender as Negas e obter lucro para compra da sua alforria).
As ruas do Acupe são tomadas por Negas e Caçadores, que encenam o horror que foi a comercialização de mulheres e homens escravizados. As Negas capturadas são jogadas aos pés dos moradores e obrigadas a suplicar por sua compra, sob a condição de tomarem um tiro na cabeça em caso do negócio não se concretizar.
“ô iaiá ele vai me matar, solta a nega…”
E os Caçadores tentam convencer os compradores:
“solta a nega sinhá, solta a nega sinhô, essa nega lava prato, ela barre casa, ê nega boa de serviço…”

E os compradores vão pagando com moedas pelas Negas escravizadas, em uma encenação itinerante que percorre as ruas do Acupe. O Rei e os Militares vão recolhendo o lucro, as moedas entregues pelos moradores.
O ciclo de aparições e intervalos da encenação se repete nos três primeiros domingos de julho, e somente no último domingo, a figura do Rei de Portugal ganha destaque no momento da sua prisão.
A cena é forte, com as Negas investindo contra os Militares. A Madrinha lança no ar a sua espada em defesa dos escravizados e um lenço branco é símbolo de paz e determina momentos de trégua na batalha.
Os Caçadores se rebelam e juntam-se aos escravizados, lutando em favor da alforria. O Rei é capturado quando o Capitão do Mato e os Militares correm da batalha.
Os negros cantam exigindo a carta de alforria ao Rei, que responde: “a carta de alforria está nas mãos dos militares”.

Os negros insistem, quando o Capitão do Mato retorna irônico simulando arrependimento e liderando o coro pela carta de alforria. O Rei ordena que os Militares sejam capturados e os Caçadores saem em sua perseguição.
Outra guerra acontece quando Caçadores e Militares se encontram, e após longa batalha, os Militares se rendem e são obrigados a entregar a carta de alforria ao Rei, que pede ao Capitão do Mato que a leia.
Após a leitura da carta de alforria, ouvem-se cânticos: “iaiá (Princesa Isabel) me soltou”.
Os puxadores imprimem o ritmo do samba de roda, dando início aos festejos da liberdade, do fim da escravidão.
A história por trás do Nego Fugido e outras aparições do Acupe
O Nego Fugido, as Caretas, os Mandus e os Bombachos, são aparições do Acupe que se fundam em uma mesma história popular.

Reza a lenda que no Acupe Velho, um senhor de engenho fracassado oferecia seus escravizados mais rebeldes como oferenda. Alguns sacerdotes iam ao local onde os corpos eram depositados e os roubavam, levando os corpos para o fundo da fazenda do senhor para lhes enterrar.
Em cada cova, plantavam uma bananeira, para que os espíritos não fossem para o orum (céu em iorubá), de maneira que seus espíritos ficassem disponíveis para serem evocados para batalhas. Anos depois, as folhas das bananeiras passaram a ser utilizadas na representação do Nego Fugido.
Assim, iku (morte em iorubá) lançou uma praga, que causou muitas mortes no mês de agosto. Os sacerdotes então se uniram e fizeram uma oferenda para que as mortes parassem.
Por isso as manifestações (aparições) do Acupe acontecem em julho, quando as pessoas saem às ruas vestidas de egunguns (espíritos evoluídos evocados de volta à terra em iorubá), para evitar mortes em agosto. As aparições têm como objetivo limpar a praga trazida pelos colonizadores portugueses.
Referência
PINTO, Monilson dos Santos. A bananeira que sangra: desobediência epistêmica, pedagogias e poéticas insurgentes nas aparições do Nego Fugido. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.
O Atelier das Artes Negras

Ir ao Atelier das Artes Negras é a oportunidade de adquirir miniaturas de personagens culturais do Acupe produzidos pela artista Nea Bulcão.
Ela é filha da Dona Santa, a mais longeva Madrinha do Nego Fugido de Acupe. Nas prateleiras do espaço encontram-se miniaturas de Caretas, de Mundus, de Bombachos, e especialmente, de Caçadores do Nego Fugido.
As peças são especiais, uma maneira do turista levar algo material sobre as aparições, além das memórias vividas por lá. Ainda dá tempo de bater um papo com Nea, que é uma figura muito simpática e cheia de conhecimentos sobre a cultura local.
A sede da Associação Cultural Nego Fugido

Visitar a sede da Associação Cultural Nego Fugido é muito importante, já que o espaço é quase um museu sobre a manifestação.
Nele se encontram diversas fotografias, objetos e vestuário dos personagens, os tambores e atabaques utilizados, dentre outros elementos.
Com sorte, ainda é possível encontrar o Dr. Monilson dos Santos Pinto, autor da tese de doutoramento que foi base para a elaboração deste artigo.
Como chegar em Acupe
O povoado quilombola de Acupe é distrito de Santo Amaro da Purificação e está localizado a aproximadamente 17 quilômetros da sede do município. Santo Amaro, por sua vez, está a 79 quilômetros de Salvador e pode ser acessada via BR-324 e BA-420.
Para quem vai de ônibus, a empresa Cidade Sol disponibiliza linhas de hora em hora a partir da Rodoviária de Salvador, para uma viagem de aproximadamente 1 hora e 15 minutos. De Santo Amaro para Acupe, é preciso tomar um táxi ou um carro de aplicativo.
Uma alternativa mais cômoda e muito mais segura é ir de transfer, com um receptivo buscando o turista no hotel onde estiver hospedado e levando-o direto para Acupe.
Onde se hospedar na região
Sem dúvida alguma, a melhor opção de hospedagem para quem vai assistir o Nego Fugido é a cidade de Santo Amaro, que oferece boas opções de hospedagem, como a Pousada Fazenda Paraíso, o Hotel Lobo, o Hotel da Purificação e a Pousada Recanto do Sítio.
Mas lembre-se de reservar com antecedência, já que a cidade é pequena e não dispõe de leitos suficientes para atender toda a demanda em períodos festivos.
Agora que você já conhece mais sobre a bela manifestação do Nego Fugido, descubra Saubara, uma cidade do Recôncavo Baiano riquíssima em história, manifestações culturais e que também proporciona lindas praias banhadas pelas águas verdes e cristalinas da Baía de Todos os Santos.
Por Márcio Vasconcelos de O. Torres
Historiador e viajante - marciotorresbb@gmail.com
